Da imortalidade da alma no Fédon, na patrística agostiniana e no hindu-budismo

 

Edição própria de pintura de Jacques-Louis David (1787)


O que há após o limiar da morte ainda é fonte de angústia, esperança e devoção. No plano mítico-religioso, a transitoriedade da vida material é indicativa de uma jornada de aperfeiçoamento para uma recompensa espiritual que seria eterna. No Fédon, atribuído a Platão, o discurso que prenuncia a morte de Sócrates, seu mestre, pode traçar paralelos com outras cosmovisões sobre a eternidade da alma. O texto em análise tomou como referência a edição da Edipro, com tradução e apresentação do professor Edson Bini, da Faculdade Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Assim, a discussão a seguir visa analisar como as ideias de eternidade e memória também estão presentes em outras tradições, como o hindu-budismo e a patrística agostiniana.

Ao descrever seu último exercício maiêutico, o discurso representa um epílogo a sua Apologia, onde havia defendido a conformidade de suas ações com a justiça e a verdade, antes de ser condenado à pena capital. A obra é uma narrativa breve do ponto de vista extensivo-textual, mas densa e abrangente quanto à sintaxe e à matéria argumentativa. O título, Fédon, refere-se ao narrador, cujo ouvinte principal é Equécrates. Fédon alega ter sido um dos expectadores do discurso final de Sócrates e inicia a narrativa assegurando fidedignidade sobre o que viu e ouviu. O diálogo não apresenta demarcadores em títulos, mas é possível dividi-lo em dois argumentos colunares: o primeiro sobre a legitimidade do suicídio (da morte) e desejo de separação da alma do corpo; e o segundo, sobre a imortalidade da alma, que preenche toda a trama argumentativa em curso.

Por que o filósofo não deve temer a morte?

   Desde o início do diálogo, Sócrates destaca a boa-venturança inerente à morte para os filósofos. Ele argumenta que aqueles que se devotam à prática do saber têm predileção pela alma e pelas realidades essenciais de uma existência elevada. A morte, neste sentido, transcende a percepção de finitude da vida terrena. Ela seria um portal de acesso à dimensão do saber pleno, etéreo e perfeito. Todavia, ao aludir ao fato de que o suicídio é reprovado religiosa e socialmente, a curiosidade de Símias e Cebes é despertada, pois se intrigam com a possibilidade de que o mestre almeje passar pelo processo.

   Sócrates reforça a premissa mítico-religiosa que justifica a não-permissividade do suicídio. No entanto, ao fazê-lo, não toma como um ponto de defesa, mas apenas como ponto de partida para contrastar com a sua premissa inicial sobre a legitimidade da morte enquanto uma passagem a ser celebrada. Assim, introduz esse ponto do debate apontando para um senso de posse dos deuses sobre as criaturas. Por uma espécie de ressentimento, os deuses tenderiam a negar o direito ao suicídio – exceto por uma concessão dos próprios. Segundo o seu argumento, o além reserva algo melhor, por isso não há por que lamentar essa transição. Cebes, supondo que os deuses são bons guardiões, refuta o argumento de legitimidade do suicídio professado, a priori, por Sócrates. A lógica em que se assenta essa refutação pontua que não há razão para fugir do zelo de seres melhores.

Segunda premissa: da imortalidade da alma

   Na segunda premissa, ainda como parte do seu primeiro argumento, o mestre recorre a uma ferramenta frequente: descrição do objeto de estudo. Assim, descreve a vida terrena como uma clausura e a morte como uma separação da alma em relação ao corpo. As almas se encontram sujeitas às tensões e desejos corpóreos e, portanto, distantes do ser, condição em que alma desencarnada seria inteiramente conhecedora de si e integrante do todo. Ou seja, os sentidos do corpo são enganosos. A alma tateia a verdade quando auxiliada por um raciocínio isento dos vícios corpóreos. Disso decorre que é mais provável que o filósofo tenda a desprezar o corpo em busca de uma verdade supra material. A verdade, portanto, compreende tudo o que é puro, somente alcançável mediante o culto à virtude e a abnegação do corpo, cuja trilha leva inexoravelmente à morte corpórea.

   Quando se fala da dualidade alma-matéria, remetemos às passagens do Evangelho cristão que preza pela abnegação do corpo para alcance de uma sabedoria e pureza sublimes, id est:

“Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus”. (Bíblia, Rm, cap 12, v.1-2);

   Ou, ainda, “[...] a sabedoria que do alto vem é, primeiramente pura, depois pacífica, moderada, tratável, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade, e sem hipocrisia” (Bíblia, Tg, cap.3, v.17).

       Outrossim, na concepção indiano-budista, também se pode depreender a existência da alma como ente que subsiste à matéria (Coelho, 2015), cujo aperfeiçoamento se dá pela renúncia de paixões e tensões materiais.

   Com essa esperança, a imperturbabilidade (e até ânsia) face à morte se deve à crença em um devir feliz: encontrar pessoas tão puras e sábias quanto aqueles que se dedicaram a buscar a verdade e, também, conhecer a própria verdade. Por fim, acentua-se a esperança de confirmar se fora um verdadeiro cultivador da filosofia

Segundo argumento: preexistência e suprassensibilidade

   O segundo argumento parte da premissa de que a alma persiste após se separar do corpo. Cebes coloca à prova a imortalidade da alma. É aqui que se passa a discorrer sobre a preexistência. Sócrates, então, sustenta que uma evidência seria a precedência do conhecimento. As almas teriam reminiscências sobre as essências pré-terrenas (bem, mal, belo, bom). A reminiscência, nada mais seria do que recuperar o conhecimento que foi perdido por ocasião do nascimento. Portanto, durante a vida terrena, os sábios tenderiam a buscar a verdade a partir das memórias legadas do mundo suprassensível.

   Portanto, a preexistência das realidades essenciais (as noções de belo, bom, igual...) é prova da existência preliminar da alma. Já se poderia, talvez, inferir que seria uma prova suficiente da continuidade existencial da alma nos pós morte. Contudo, ele também acentua que, do mesmo modo que as grandezas antagônicas são princípios geradores, a precedência da alma indica necessariamente, a continuidade após a morte.

   A continuidade contempla tudo o que está ligado ao mundo suprassensível. Assim, Sócrates empreende uma nova investida argumentativa para averiguar se a alma consiste em algo passível de dispersão, de não ser mortal. As coisas não-compostas são suscetíveis à dispersão, coincidindo com a ideia de que a substância per si é imutável, bem como as essências são invisíveis.

   As almas felizes são as que dedicaram a vida ao alcance da verdade e à prática da filosofia. Estas, pelo exercício de abstenção das disposições corpóreas, encontram-se puras e prontas para irem ao Hades. De outro modo, as almas que se submeteram aos prazeres e dores carnais, estão fadadas a retornarem ao plano terreno tão logo desencarnam, pois estão impuras. (Fim do 1 argumento sobre não-dissipação da alma). Nessa passagem, pode-se remeter à ideia de Samsara, onde o aprimoramento cíclico do ser o leva a sucessivas reencarnações até que, por fim, atinja o nirvana, estado de plena Illuminação retorno à natureza primordial (Borges, 2015).

   Daí em diante, surgem novas contestações por parte de Símias e Cebes, partindo da ideia de harmonia e materialidade. Se a harmonia é uma essência ou substância abstrata que precede a materialidade, por que Símias questiona a precedência e perenidade da alma frente ao corpo (aqui aludido pela lira)? A questão embasa o contraponto à continuidade da alma pós morte, construindo uma analogia segundo a qual o corpo (lira) e a harmonia do som (alma) deixam de ser percebidos simultaneamente e, portanto, a alma também deixaria de existir com a morte do corpo. O argumento gera um breve hiato e, quiçá, uma crise efêmera do argumento socrático. O ponto alto da crítica é a não-comprovação da imortalidade por parte de Cebes – que, inclusive, rebate a questão de símias. Após inserir a ideia de extremos opostos e resgatar a argumentação de Símias e Cebes, Sócrates inicia o contraponto a Símias. Particularmente, aponta para a incompatibilidade entre a premissa 1 (preexistência da harmonia) e a premissa 2 (dissipação preliminar da harmonia em relação à lira).

   A sustentação do argumento de imortalidade segue com uma análise sobre como as noções suprassensíveis qualificam as coisas particulares. Trata-se, novamente, da participação de elementos particulares (por exemplo, números ímpares como o 3) em uma concepção dimensional maior, genérica – neste caso, a “imparidade". A premissa leva à constatação de que o bem, o belo e o bom o são por si mesmos. Ainda, as coisas particulares participam dessas essências, o que as torna belas ou boas ou do bem. Logo, é a participação na essência própria que torna as coisas como são, que lhes atribui um nome ou qualidade. Portanto, a alma não é uma manifestação do corpo, como supõe a analogia da harmonia e da lira, mas, sim, um reflexo das realidades essenciais suprassensíveis, que participa dessas essências e, temporariamente, se manifesta nas formas corpóreas.

   A consciência prévia sobres as realidades essenciais de que somos participantes é o que nos permite procurar o suprassensível. A perda desse conhecimento elevado acontece no nascimento, mas pode ser resgatado pela memória, mediante a filosofia. Aqui, é possível tecer paralelos com as ideias de memória e reminiscência que derivam do pensamento platônico. Da patrística medieval, por exemplo, convém mencionar a teoria da memória, do pensamento agostiniano. A alma seria o sopro que confere vida aos seres, cujo espírito os dota de: mens (mente), capaz de apreender o que é inteligível; a ratio (razão) e o intellectus, superior à razão (Lima & Ferreira, 2012). Para Santo Agostinho, a alma capta apenas o que é sensível ao espírito, o que coincide com a ideia de reminiscência, descrita por Sócrates como o processo de regate do conhecimento prévio que é perdido no nascimento, mas recobrado através do desapego dos sentidos equivocados.  A diferença situa-se aqui, na ideia de que os sentidos são equivocados. Para Santo Agostinho, os sentidos são auxiliares no processo de apreensão das coisas inteligíveis, ao passo que, no Fédon, os vemos como lentes opacas, que guiam a mente de forma equivocada.

   Ainda, acerca da relação mente-corpo, para a tradição tibetana, há uma dimensão recôndita do ser, que condiz com a natureza de Buda, segundo a qual: "a mente, dotada de uma primordial cognição não-dual (rig-pa), e o corpo energético, constituído por aquilo a que os tibetanos chamam rlung, que se pode traduzir por "vento" e se considera o veículo rarefeito da consciência" (Borges, 2015). Essa natureza consistiria na destinação final do ser, isento de nascimentos, mas tem sua manifestação corrompida pela vida terrena (Borges, 2015). Há uma intersecção com o raciocínio socrático de equívoco dos sentidos, posto que a vida material, atrelada aos ciclos de nascimentos, pode deturpar essa dimensão sublime ou superior da existência.

   [...]

   Por fim, conclui-se pela imortalidade da alma, uma vez que que o oposto da morte é o imortal – a alma (abstrata) não admite a morte e, portanto, é imortal e indestrutível. Neste sentido, a sentença recebida por Sócrates não significaria uma desventura, mas sim o alcance do propósito final de uma vida empenhada à filosofia, ao alcance do saber pleno e perfeito.

A importância do Fédon nos dias atuais

   O diálogo sobre a transmigração está para a ideia de metempsicose da filosofia antiga assim como a eternidade da alma está para a religião. A finitude da existência sempre aparece como fonte de inquietação entre os seres conscientes, motivo pelo qual as diversas culturas e civilizações tentaram tecer explicações à sua maneira, através de ritos que suas respectivas cosmogonias empregaram para dar sentido à vida, à aleatoriedade em que ela se constrói e à sua efemeridade. Apesar da profusão de visões sobre a eternidade ou brevidade da alma na filosofia, na religião e nas artes, é possível identificar pontos comuns no sentido do que vem a ser o cultivo da virtude como um caminho que conduz a uma espécie de saber pleno como recompensa à renúncia.

   Na filosofia platônica, o pressuposto de eternidade justificaria o amor ao saber e a busca interminável pelo que é elevado, pois a alma tenderia a procurar as realidades essenciais que a engendraram, as quais são espelhadas nas virtudes. Na patrística medieval, encontram-se ecos desse raciocínio na ideia de que a alma apreende o que é sensível aos sentidos, sendo ela imortal e capaz de dotar os seres de vida, razão e inteligência, porém estas operações estão associadas às faculdades do espírito; ao passo que, no budismo, tem-se a impermanência dos ciclos de reencarnação reparativa através do aprendizado na vida terrena, até que o indivíduo alcance a iluminação.

   A patrística agostiniana, talvez por ser tributária da mesma raiz de pensamento ocidental, converge com a fórmula abnegação-salvação da alma. No budismo, diferentemente, observa-se uma ausência da noção de temporalidade linear recompensada pela eternidade. Nesse estilo, a jornada do indivíduo desemboca no alcance da natureza de buda, na cessação dos ciclos de renascimentos.

   Por fim, vale considerar que o decurso da história das civilizações ocidentais e orientais não parece ter sanado o antigo debate sobre a morte e destinação da alma, mas o diálogo descrito no Fédon transpôs o tempo na sua grandiosidade argumentativa e, se não serve de resolução efetiva para as angústias existenciais humanas, pode servir como um caminho de consolo, tal como outras fontes de mesma magnitude – ao exemplo dos textos patrístico-agostinianos ou de doutrina hindu-budista. Outrossim, o discurso inspira a aceitação de que a passagem material é breve, mas pode ser regada pelo saber e por práticas benevolentes que possam melhorar a vida presente e legar boas direções para a passagem de quem vier no futuro.

   Autoria: Renata Amorim, (2024).

 

5.         Referências

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/#google_vignette Acesso em: 13 jun. 2024.

BORGES, Paulo. A Morte no Budismo: da contemplação da impermanência à vida pós-morte e à descoberta da imortalidade. Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, v. 1, n. 65, p. 1243-1290, 19 dez. 2015. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/41220930. Acesso em: 05 maio 2024.

COELHO, Humberto Schubert. O PARADOXO DO A BSOLUTO BUDISTA NEGAÇÃO E AFIRMA ÇÃO DA ETERNIDADE DAS ESSÊN CIAS. P E R I, Florianópolis, v. 7, n. 1, p. 244-262, 16 mar. 2015. Disponível em: https://ojs.sites.ufsc.br/index.php/peri/article/view/964. Acesso em: 05 maio 02024.

LIMA, Ricardo Pereira Santos; FERREIRA, Anselmo Tadeu. AS PARTICULARIDADES DO CONCEITO "ALMA" NO PENSAMENTO DE AGOSTINHO. Horizonte Científico, Uberlândia, v. 2, n. 6, p. 1-31, 20 nov. 2006. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/horizontecientifico/article/view/14522. Acesso em: 02 maio 2024.

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