Terra estrangeira: uma ode à saudade, um retrato do exílio

A parceria Fernanda Torres-Walter Salles reacendeu a febre pelo Cinema Nacional em 2025. Então, há algumas semanas, passei a mergulhar no cinema torres-sallesiano, para conhecer um pouco dessas potências que têm projetado nosso nome mundo afora. Assisti a Saneamento Básico, uma comédia que satiriza a negligência do poder público com questões ambientais e me diverti à beça, principalmente com aquela que “é Silene, a Silene Seagal”, personagem interpretada por Camila Pitanga. O filme não conta com a direção de Walter Salles, e sim de Jorge Furtado, mas tem Fernanda Torres, que está bárbara. Só que Silene foi muito marcante. Depois, resolvi assistir ao título Terra Estrangeira (1995). É aqui que eu quero ficar! 

Os protagonistas têm histórias cativantes que se constroem por caminhos tortuosos, sem qualquer chance de retorno. Gostei tanto que nem vi passar. 

Imagem: Google Imagens



Unir política e dramas reais é próprio do gênero Salles de cinema. A trama se insere em um contexto político econômico caótico. O clímax começa com a retratação de um capítulo da economia do Brasil, cujos resultados foram desastrosos: a retenção dos valores em conta dos brasileiros, uma medida da pasta econômica liderada pela economista Zélia Cardoso. A medida fazia parte do receituário do Plano Collor 1, do então presidente Fenando Collor de Mello. A recessão econômica que se seguiu agravou o cenário de miséria e desigualdade no País. Um dos protagonistas é diretamente afetado por esse golpe político e tem sua vida drasticamente transformada. 

Acerca das personagens, o que me impressionou foi o quão autênticas, reais e humanas elas parecem. Eu me esqueci de que havia atores ali – eles eram aquelas pessoas fictícias! A personagem Alex, interpretada por Fernanda, é a típica "bonitinha mas ordinária" que nos enlaça desde os primeiros takes. Como não amar essa menina que nos dá uma palinha de Vapor Barato?! Ela é a nossa honey baby! Fernando Alves Pinto dá vida a Paco, um cara (um gajo?) desnorteado, com uns lampejos de saudade, desespero e abandono. Ele faz uns monólogos fascinantes que adquirem significado no decorrer da trama. 

Nessas passagens de Paco, ele declama um trecho que me fez remeter às ideias de Fausto. Eu tinha achado familiar, mas não tinha reconhecido como um trecho da obra cuja versão que conheci é de 2003. Corroborando as minhas impressões, Soares (2014) também fez uma análise sobre Terra Estrangeira em que evoca essa verossimilhança, citando uma edição de 1981. A seguir, cito um trecho do monólogo de Paco, onde ele vocifera suas tensões por liberdade, poder e descobertas. Essas tensões, para mim, também são uma marca do ideário megalomaníaco da aclamada personagem de Goethe. 
 
Sinto meus poderes aumentarem...Sinto meus poderes aumentarem! 
Ardendo, bêbado de um novo vinho. 
Sinto a coragem, o ímpeto de ir ao mundo, de carregar a dor da Terra e o prazer da Terra. De lutar contra tempestades e enfrentar a ira do trovão. 
Nuvens se ajuntam sobre mim. A lua esconde a sua luz, a lâmpada se apaga. 
Devo levantar… Devo levantar! Eu não era nada e aquilo me bastava. 
Agora não quero mais a parte, eu quero da vida o todo. 
Espíritos pairam próximos, me ouvem. Desçam! Desçam dessa atmosfera áurea. 
Levem-me daqui para uma vida nova e variada. 
Que o manto mágico seja meu e me carregue para terras estrangeiras.  
Vou levantar… Que minha vida seja o custo!
 Achei apoteótica a passagem em que o personagem precede uma fuga com essa declamação e dá início a uma corrida em um plano sequência eletrizante. Parece resumir sua vontade de arriscar tudo pela liberdade, de seguir o périplo dos imigrantes em terras estranhas. De perseguir seus sonhos e reaver o que lhe foi negado em sua própria terra. 

Terra estrangeira é um filme que apresenta linhas de drama, romance e política. Todo o filme tem uma atmosfera de saudade dominada pelo mistério, que aumenta o medo do devir, com intercalações súbitas de ação. Através de uma fotografia impecável, cortes e angulações intimistas, a obra mostra esperança e aconchego em meio à hostilidade do desconhecido. A cena em que Alex e Paco figuram, no primeiro plano, abraçados diante de um navio encalhado é o epítome da mensagem do filme. É bela, é apaixonante. É um filme que desnuda os sentimentos do imigrante: medo, incerteza, estranheza e uma saudade esperançosa. 
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Referências: 

GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1981. 
SOARES, Paulo Marcondes Ferreira. Exílio e diáspora nas personagens de ficção Paulo Martins (Terra em transe) e Paco (Terra estrangeira). Civitas - Revista de Ciências Sociais, [S.L.], v. 14, n. 1, p. 93, 11 abr. 2014. EDIPUCRS. http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2014.1.16187. 

 Filmografia: 
SANEAMENTO Básico. Direção: Jorge Furtado. Porto Alegre: Casa de Cinema de Porto Alegre; Columbia Pictures do Brasil; Globo Filmes, 2007. [Produção: Zur Escobar] (35mm, COR, 112min); 
TERRA Estrangeira. Direção: Walter Salles e Daniela Thomas. São Paulo: Videofilmes, 1996 [produção executiva Flavio Tambellini]. DVD (100 min.), p&b.

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