Humanitas: amor, loucura e comédia
Resenha Literária
Publicado originalmente em: Jun, 2024 | Medium
“Há, nas coisas todas, certa substância recôndita e idêntica, um princípio universal, eterno […]”
Nesses termos, Quincas Borba
descreve Humanitas. Sim, aquele amigo que, muito provavelmente,
você conheceu em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Mas, aqui, não
vamos nos ocupar dele, vamos falar de um terceiro, que é amigo de Quincas. Ele
se chama Rubião…(pausa para conter o riso). É um nome que soa gracioso, mas ele
não é nenhum palerma. Infelizmente, a perspicácia também não é um de seus dotes
mais notáveis. Mas vamos a ele.
Pedro Rubião de
Alvarenga é um humilde professor primário de Barbacena, no interior de Minas
Gerais. Por sorte ou capricho do destino, tornou-se o último discípulo de
Quincas Borba e entendedor final de sua filosofia. Depois de acompanhar os
últimos desvarios do amigo, tomou notícia de que havia falecido na casa de Brás
Cubas por uma febre. A partir de então, Rubião dá seguimento a uma trama de
sinuosos desafios, talvez explicáveis pelo Humanitismo.
O Humanitismo é uma
filosofia concebida por Quincas Borba. Alguns aspectos podem remeter ao
Estoicismo, como a sua resignação perante os processos da vida que têm a morte
como supressão, a fim de alimentar o princípio indestrutível humanitista — sim,
humanitista, e não humanista como você pensou. Mas é mais
plausível a interpretação dessa nova doutrina como uma sátira do autor às
correntes filosóficas em voga no séc. XIX, como o Positivismo e o Darwinismo
Social (GUIMARÃES, 2019). Ambas pautavam ideias de aprimoramento da sociedade
através da eliminação de entes menos adeptos ao ambiente. Trata-se da
conhecida lei do mais forte.
Ao se tornar o herdeiro
universal dos bens do amigo, nosso protagonista também parece herdar
não só da filosofia de Humanitas, mas também da sina das típicas personalidades
machadianas: as desditas de amores incautos, perfídias de poder e política e as
peripécias enigmáticas — que nos deixam na dúvida se aconteceram mesmo ou se
foram apenas devaneios do protagonista.
Ele toma posse dos bens
deixados e resolve se mudar para o Rio de Janeiro, a então capital do Império.
Mas, antes de tudo, teve de atender à condição testamentária: zelar pelo
cachorro do falecido, também chamado Quincas Borba. Logo no início da
transição, durante a viagem de trem, Cristiano de Almeida Palha, o Palha, como
será referido ao longo do romance, aproximou-se de Rubião. Ele e a esposa,
Sofia, se apresentam e, depois de uma longa conversa, tornam-se amigos
inseparáveis (ou, até que a insanidade e a penúria os separem). O triângulo
começa aqui.
Instalado em sua mansão
em Botafogo, após algumas ocasiões de socialização, Rubião se dá por vencido
pelos olhos de Sofia. Ao mencionar que “parece que ela os compra em uma
fábrica misteriosa”, o narrador-autor deixa indícios de um traço
típico das mulheres de suas tramas. É perceptível uma fixação pelos olhos
furtivos das personagens de Machado.
Imagem: edição da autora com base em
materiais do banco de imagens Pixabay.
Em suas outras personagens, ele
canaliza através dos olhos todo o fetiche feminino, que vai da candura a uma
sensualidade capciosa, partindo daí para dar os contornos de personalidade,
afetos e desejos delas. Assim o faz com Capitu, em Dom Casmurro,
quando fala do olhar de ressaca. Em Memórias Póstumas
de Brás Cubas, os olhos de Eugênia denunciam as maneiras plácidas da jovem,
com seus olhos “tranquilos e lúcidos”; enquanto Virgília
tem como marca o “olhar travesso”. Está provado: os olhos são as
janelas da alma, como diz o provérbio popular.
Apesar de ser novato nos
círculos sociais abastados, a capital do Império não é um panorama inédito para
o nosso amigo. Passagens adiante, ele dá mostras de que já esteve nela durante
a juventude, quando assistiu a um enforcamento de um rapaz negro, acusado de
assassinato…na Rua dos Ourives. E, nessa roda de reminiscências e ilusões,
Rubião vai firmando os pés e o coração nas ruas do Rio de Janeiro, vai se
inebriando com os olhos de Sofia e se envolvendo profundamente com o Palha e os
novos amigos. Um deles é Carlos Maria, um jovem pedante que desperta o
interesse de Sofia; e o Dr. Camacho, dono de um jornal e inserido na política,
que vai tentar alçar Rubião a uma candidatura pública.
A inclusão de outros
núcleos paralelos ao triângulo (que só existe na cabeça de Rubião) confere um
grau interessante à história. Maria Benedita, Fernanda e Teófilo são alguns
desses personagens acessórios no clímax. Fernanda cumpre um papel mediador em
vários momentos. Primeiro, ao redefinir o status amoroso de Maria Benedita e,
depois, ao auxiliar nos cuidados a Rubião em uma fase posterior da trama. Maria
Benedita contrabalança o possível enredo entre Carlos Maria e Sofia. Teófilo,
por seu turno, é mais um daqueles personagens cuja vida é vocacionada ao
trabalho. No caso dele, a Política!
Resumindo os desfechos
em allegro moderato, Maria Benedita se casa com Carlos Maria, mas a
contragosto de Sofia que pretendia casá-la com Rubião. O que se percebe é que
ela o repudia, mas busca mantê-lo próximo, tentando empurrá-lo para a prima. E,
na medida da infelicidade de Sofia, crescem as esperanças de Rubião. No
entanto, logo se dissipam, pelo menos temporariamente. Um bilhete intruso acaba
caindo em suas mãos e passa a alimentar encontros, que concorrem com
conversações e terminam por insinuar intimidades maiores entre Sofia e Carlos
Maria. Mas não passam de mais um equívoco intencional, restando a nós,
leitores, a dúvida ou o remorso.
Corta para a psiqué de
Rubião. As fantasias com Sofia se tornam tão cotidianas que, em conjunto com as
promessas políticas, vão moldando uma megalomania irremediável. Quando ele não
consegue mais distinguir a fantasia da realidade, chega às raias da loucura,
assim como o falecido Quincas. Após ser internado e perder todos os bens,
Rubião retorna ao cenário original dessa história, Barbacena, acompanhado de
seu cão, Quincas Borba. Ele compreende e repete o mote de Humanitas: “Ao
vencedor, as batatas!”.
Conclusões
A leitura das obras
machadianas sempre será uma experiência de grandes ganhos, arrebatadora em cada
palavra. Embora se distinguisse dos seus contemporâneos por não adornar o texto
com palavras rebuscadas para a época, o texto é profuso em recursos
estilísticos e semânticos, mas de uma maneira que não compromete a clareza e
ainda nos cativam. É inevitável não querer seguir descobrindo mais sobre o que
o narrador vai contar do personagem
A jornada de Rubião pode
ser uma alusão ao princípio geral que rege a filosofia de Quincas Borba. Não
cabe ser lida como um malogro tampouco como um caso de sucesso ilusório. O
romance coloca em cena os processos que permitem a continuação da vida, na
qual, mediante as desventuras de alguns, outros conseguem se favorecer. Isso,
na prática, resume parte do que é Humanitas. Ainda, é perceptível uma
replicação da fórmula do capitalismo levado a termo nas relações sociais, pois
em busca de lucro, status e poder, alguns personagens se aproveitam das
tendências solidárias do personagem principal, bem como de suas paixões mais
descabidas.
Se for admissível uma
divagação, vale denunciar mais um traço característico das narrativas de
Machado: a loucura ou o mero indício dela. Mais uma vez, o autor nos faz
imergir nas ideações do personagem e, de forma sutil, vai plantando a dúvida sobre
a possibilidade do que é real ou ilusório. Assim como se vê uma faísca de
insanidade em Bentinho, de Dom Casmurro, no saudoso Dr. Simão
Bacamarte de O alienista, aqui, a loucura é recorrente e afeta a
personagem central.
O fim do embate de
relações tendeu para o que estava fadado a ser: aos que se sobressaíram na
trama de interesses e afetos, o prêmio foi continuarem suas vidas, ignorando a
existência de conflitos, mas agindo conforme a sua lógica de autopromoção. Aos
que se embeveceram ou seguiram sozinhos, é reservado o consolo da ilusão, do
triunfo imaginário. Como anunciara Quincas, o legado é que “ao vencedor, as
batatas!”
REFERÊNCIAS
As fontes foram consultadas apenas
para confirmação de marcos teóricos e sociais.
GUIMARÃES, H. S. In: USP. [Livros da
Fuvest] Quincas Borba (Machado de Assis). YouTube, 07 de nov. 2019. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=16SzotpYQM8 Acesso
em: 13 jun. 2024.
KIYOMURA, Leila. Jornal da USP.
“Quincas Borba” expõe novas e velhas formas de exploração. Disponível em: https://jornal.usp.br/cultura/quincas-borba-expoe-novas-e-velhas-formas-de-exploracao/ Acesso
em: 13 jun. 2024.
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