As estações do "ser" em tela

>> Crônica

 

“A finalidade da arte é, simplesmente, criar um estudo da alma.”

Oscar Wilde

 

    É uma manhã de sábado de maio, mês das mães, das noivas e ápice do outono. São Paulo está entre as sombras frígidas de um inverno nascente e a luz cálida de um sol veranil. Isso mesmo, “o tempo nela não obedece aos ditames de uma estação regular”, observa Alberto, um professor de Filosofia, orgulhosamente provinciano, que acabara de se radicar em São Paulo. Como de costume, ele está adentrando os célebres portões de acesso à Pinacoteca, porque pretende realizar uma atividade dinâmica, entrecruzando a arte e o feminino na Filosofia. Imaginou que o acervo da Pina pudesse fornecer referências locais e internacionais mais próximas, para trazer o tema ao debate com os alunos.

    Até o entardecer, registrou algumas fotos de esculturas, pinturas e gravuras. Mas, em um rápido passeio pelas telas da Exposição de Longa Duração, cativou-se por algumas obras. Em Torço de Menina (1892), de Eliseu Visconti, anteviu na delicadeza dos traços um anúncio de resignação feminina diante dos grilhões que o patriarcado coloca a toda a forma de feminilidade nascente. Murmurou para si: “pobre criança...suas formas devem ter sido uma afronta para a moralidade hipócrita daqueles e de nossos tempos”. Em Criação da Avó (1895), de Oscar Pereira da Silva, enxergou a compensação da maternidade da avó. Resgatou alguns jargões que afirmam que as avós aproveitam melhor a maternidade nos netos, pois já aprenderam lições com os filhos, estão isentas das cobranças (?) e isso explica tudo sobre as avós. Mas se identificou com Canção Sentimental (1904), de Bertha Worms, onde uma jovem em tons quentes de vermelho e marrom transparece domínio de si no dedilhado de um violão, uma sensualidade discreta e um mistério nos olhos que a faz transitar entre o Eros, a Psiqué e o drama ofélico de Shakespeare.

    Passados alguns minutos de contemplação, recobrou a ideia de que precisava ir para casa. Mas, caminhando pelos corredores rumo à saída, lembrou-se da sua falecida mãe. Amanhã poderia estar ao lado dela celebrando o Dia das Mães ou, talvez, ouvindo a sua voz em uma chamada. Tudo naquela ambientação o fazia remeter à sua família no interior de Goiás.  Ao chegar à escadaria, abriu o celular, chamou um Uber e pôs-se à espera. Estava a um minuto de distância, então acelerou o passo e, em instantes, viu o seu transporte chegar. Cumprimentou o motorista com a sua polidez de quem quer seguir em silêncio e o ouviu responder em voz entusiasmada, mas interrupta: “Boa tarde! Alberto, né?”. Ele confirmou e seguiram. Durante o percurso até a sua casa, as memórias de Alberto sarabandeavam os dias felizes com a mãe, o sorriso cansado, a fé em Nossa Senhora, os gracejos de todo dia, todo o carinho e a possibilidade de que ela o aceitasse como ele era. Pensou: ela não me deixaria...

    Até chegar ao seu destino, uma pequena edificação antiga na Mooca, Alberto deteve-se em frente ao portão. Percebeu o quanto, mesmo nas suas decisões independentes, tentara resgatar a comodidade do lar onde cresceu. A sua casa tinha os moldes de uma típica construção à la italiana, cujos tons amarelados das paredes externas se juntavam com as bougainvilles plantadas por ele para resguardar um ar de vida idílica, de artesanato...de casa, quem sabe?! 

    O nosso camarada se via, assim, enlaçado no complexo amor e ódio de que a psicanálise tanto se ocupa. Como entender a busca por elementos subconscientes que materializavam toda a rejeição que dantes sofrera por parte do pai? Ele mesmo se perguntava: “por que a saudade de um tempo em que eu era a aparência de uma idealização paterna? Saudade é um sentimento incógnito. Sinto falta dele, apesar de tudo”. Atravessou o portão e a porta nessa tônica de pensamentos irrequietos, nada novos na rotina dele. Amiúde, a lembrança do pai de Alberto, o senhor Marcos, evocava tormentos, afeto e rejeição. Seu pai o renegara por ser homossexual, convidou-o a sair de casa “se quisesse insistir nessa aberração”. Era essa a sentença que ecoava com ímpeto na mente dele.

    A mãe, por seu lado, apesar de ter partido cedo, inspirava vida. Ela era a marca da alegria, das cores do verão em todas as épocas. Acolhia quem ele era e desatava os nós da vida com a maestria de uma anciã. Sabia valsar as sinfonias da beleza como uma jovem debutante. “Ela, sim, ela era toda a diversidade”. Mais uma vez, ele questionara se todas as estações da sua vida seriam entrecortadas por dúvidas sobre aceitação familiar. Talvez, devesse criar a sua própria família e esquecer os preceitos fundacionais de outrora. Mas tinha consciência de que, mesmo a contragosto, aqueles preceitos forjaram uma parte de sua identidade de alguma maneira.

 – Eu sou o resultado dessa altercação entre o eu que quero para mim e o que me foi apresentado. Uma desavença interminável que me golpeia todos os dias. Só quero ser, apenas ser. Ou será que é demais?

    Ele segue absorto em frente ao espelho a contemplar, agora, as próprias cores e texturas. Aprecia e acaricia essa face em tons de centeio. Tem os olhos cansados de quem já assistiu a todas as estações em um ciclo sem fim. Parou e se perguntou se precisava, a essa altura da vida, responder quem ele era. Mas, por fim, concluiu: “em cada estação, somos outros. Se mudamos, precisamos nos redescobrir e conhecer de novo”. Alberto não é quem os pais idealizaram, mas ainda teria em si alguns resquícios identitários que deles legou. Ainda não é quem pretende ser, mas já escalou muito da montanha do “eu” incógnito que é, que vai descobrir em cada estação, amadurecendo, florescendo em suas convicções, ações e lutas. Afinal, família transcende formatos. A família nos confronta e, nesse embate, também nos permite refazer vínculos, ressignificar e nos conhecer para ser(mos).


Imagem: Pixabay (2024), domínio público.


AMORIM, R. Crônica autodirigida, 2024.

 

 

 

 

 


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